quarta-feira, 27 de julho de 2011

Enéas de Souza: “Estamos na tempestade e não percebemos”


“As coisas só se resolvem com o Estado tendo um controle da economia, e a questão sempre é quem controla esse Estado, e fazendo o quê” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Daniel Cassol e Benedito Tadeu César

No momento em que os Estados Unidos discute a elevação do teto da dívida pública e a União Europeia trabalha para socorrer a economia de seus países integrantes, o mundo busca explicações sobre a natureza de mais uma crise financeira.

“Estamos no meio de um temporal e não percebemos”, resume o economista Enéas de Souza, que nos seus artigos no Sul21 vem analisando a derrocada dos mercados na Europa e nos Estados Unidos e as alternativas para a saída da crise. Desta vez em longa entrevista, com trechos em vídeo e a íntegra em áudio, o economista aprofunda seus pontos de vista e não deixa de criticar às análises economicistas.

“Os que se recusaram a pensar a política estão fora da compreensão da situação atual do mundo, porque ela é complexa, é uma crise financeira, produtiva, estatal e ideológica”, diz Enéas de Souza, lembrando que ainda não estamos conseguindo perceber as profundas transformações que estão ocorrendo no modo como funciona a sociedade.

Nesta entrevista, realizada em sua residência na semana passada, Enéas de Souza analisa as causas da crise financeira, o momento atual dos Estados Unidos e da União Europeia, e o processo de transição para uma nova economia, no qual o Brasil pode jogar um papel preponderante. “As coisas só se resolvem com o Estado tendo um controle da economia, e a questão sempre é quem controla esse Estado, e fazendo o quê”, afirma.



Sul21 – Em um dos teus artigos recentes no Sul21, tu escreveste que as causas da crise financeira de 2007 e 2008 ainda não foram resolvidas. Qual é a natureza e a gravidade dessa crise?

Enéas de Souza – Estamos num momento de transição. A atual sociedade tem uma hegemonia brutal das finanças sobre a economia e sobre o Estado. Houve, a partir a destruição da União Soviética, a criação de um eixo único da economia e da política, dominado pelos Estados Unidos. Esse eixo entrou em crise em 2001, na crise das bolsas. Estamos na passagem de uma estrutura produtiva, baseada em petróleo e automóveis, para uma outra realidade, que são as tecnologias de comunicação e informação. Mas as coisas não se transformam assim. A economia vai crescendo, atinge uma maturidade e começa a cair, enquanto que na parte final desse ciclo, uma outra economia produtiva vai funcionando. A crise é financeira, mas também produtiva, de Estado e ideológica. São essas quatro crises funcionando no momento. Na crise financeira, o centro que move a finança é a especulação. Vai se especulando, especulando, e aí o ponto fundamental foi o sistema de securitização, eu sustento um título, em cima de outro título, e assim vai, uma montanha de títulos que não se sustentam em nada. Até que chega um ponto que o título não funciona mais. No final da crise imobiliária, qualquer pessoa nos Estados Unidos poderia comprar um apartamento, sem dinheiro, sem ativos, sem propriedades.


“Estamos no meio de um temporal e nem enxergamos. Uma das questões chave dessa situação é uma crise ideológica muito profunda, que leva inclusive as pessoas a não se informarem muito. Muitos economistas só ficaram ligados nas questões do mercado e perderam o bonde. Não estão entendendo essa realidade toda” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Sul21 – É o final de um grande ciclo, com a fuga dos capitais para o mercado especulativo.

Enéas de Souza – Mas esse sistema sempre foi especulativo a partir dos anos 70, quando se criou uma hegemonia das finanças que precisavam dominar o sistema. O que fizeram? Construíram uma moeda, uma moeda financeira. Acabou a moeda dólar ouro, que era uma moeda ligada a uma mercadoria, e criaram uma moeda que não está ligada em nada, a não ser o Estado. Por isso, em todas as crises financeiras já se afeta uma questão monetária. A moeda financeira é garantida por um Estado, no caso americano. No caso do euro, temos um problema. Por quem é garantido o euro? Não temos um Tesouro da Europa. Se eu quero comprar um produto, troco dinheiro pela mercadoria. Mas se quero guardar dinheiro, como guardar sem perder valor? Se eu tenho ouro, ele funciona como valor geral. No momento que eu não tenho mais isso, tenho que conservar de alguma forma. Eu posso conservar o dinheiro aplicando em títulos do tesouro americano, que é o título mais valorizado e o mais seguro.

Sul21 – Hoje há uma crise nos Estados Unidos, uma disputa entre republicados e o governo de Barack Obama, que precisa ampliar o poder de endividamento. Se ele não conseguir, quais são as consequências?

Enéas de Souza – Se eu limitar o endividamento, significa que não posso mais pedir empréstimos. Se não posso pedir empréstimos, não terei dinheiro para pagar os títulos que estão no mundo. Esse endividamento dá uma crise geral. Se o Tesouro americano não consegue pagar seus títulos, o dólar passa a não ser uma moeda respeitável. Quem tem títulos em dólares, terá problemas. A China tem mais de US$ 1 trilhão em títulos americanos, o Brasil tem US$ 200 e poucos bilhões. Há uma situação relativamente em cadeia. Os próprios capitais teriam um problema pois estariam colocados numa moeda que não tem uma garantia. A especulação seria absolutamente violentíssima.

Sul21 – Isso tem solução? O padrão anterior era ouro, que acabou nos anos 70, e hoje é a moeda financeira. Qual a outra alternativa para a moeda financeira?

Enéas de Souza – Nós temos uma questão política por trás, que é a reorganização do mundo, que passa por dois eixos. O eixo EUA-Inglaterra-Europa, que está inflamando, e o outro é a China, Ásia, e passa pelo Brasil também, que está no meio dos dois. Toda a questão é qual vai ser a moeda. Em princípio, vai ter que ser o dólar, pois ele é garantido por um Estado que tem uma economia poderosa, além de poderio militar, ideológico e diplomático. Se o dólar entra em questão, temos um problema. Já o euro está muito pior que o dólar. Qual seria a moeda? Poderia ser o yuan da China, mas ela é uma moeda administrada e não está sofrendo os impactos do mercado internacional.


“As finanças estão entrando em crise, elas dominam o Estado, mas elas não têm projeto, pois elas jogam no instantâneo, no imediato. O projeto das finanças é o projeto de hoje” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Sul21 – O ministro da Fazenda, Guido Mantega, tem uma proposta de uma cesta de moedas.

Enéas de Souza – Seria um conjunto de moedas, com uma ponderação, e o resultado disso dá uma moeda de troca internacional. Pois uma coisa são as trocas entre países, e outra é a moeda interna de um país. O problema é que ponderações vamos dar, ou seja, é um jogo também político.

Sul21 – Se centraliza num só país, ele fica com muito poder. Se retira…

Enéas de Souza – A moeda é resultado de poder político e econômico, não apenas econômico. A moeda tem de ser exatamente financeira nesse momento, pois as finanças continuam dominando, mas tudo vai depender do mundo para o qual estamos indo. As finanças estão entrando em crise, elas dominam o Estado, mas elas não têm projeto, pois elas jogam no instantâneo, no imediato. O projeto das finanças é o projeto de hoje. A passagem do modelo centrado no petróleo para o modelo das tecnologias de comunicação vai criar uma mudança completa, mas para isso acontecer é necessário que tenha algo impedindo as finanças de continuarem com seu jogo especulativo. Como as finanças dominam o Estado, o Estado não tem condições de dominar as finanças. Nos EUA, todas as leis passam pelo Congresso. Quem tem poder no Congresso são os lobbies. Quando houve o segundo plano de salvamento dos bancos americanos, o Congresso bloqueou todas as propostas do Obama, ou deixou apenas as menores, aquelas que até ajudariam as finanças. É preciso controlar as finanças, porque o crédito não pode ir para a especulação, mas também para a produção. Se as finanças se autorregulam, tu achas que elas vão se voltar para a produção?

Sul21 – Como disse Max Weber, o capitalismo é o encontro do capital com o Estado. Como o capital hoje controla o Estado, há um desequilíbrio.

Enéas de Souza – O FED (Banco Central americano) é dirigido por um financista. Do outro lado você tem o Tesouro, que gere as finanças do Estado. No caso do americano, o secretário do Tesouro é o Timothy Geithner, um cara que vem do Banco Central de Nova Iorque, é ligado às finanças. Como foi montado o governo Obama? O conselho dele na Casa Branca era dominado pelo Lawrence Summers, um homem vinculado às finanças. As finanças dominam completamente o Legislativo e o Executivo. A proposta do Obama, que não era necessariamente antifinancista, mas era mais regulacionista, foi bloqueada no Congresso. Uma das questões fundamentais é separar os bancos das instituições financeiras especulativas, dos bancos de investimento, pois é necessário ter uma possibilidade de crédito para o setor produtivo, senão tudo vai para a área financeira. O conceito que me parece importante é o conceito de capital financeiro, pois ele mostra que há duas órbitas no movimento de capital, uma financeira e outra produtiva. Só que quando há hegemonia financeira, a órbita produtiva se gere em função da outra. As tesourarias de todas as empresas aplicam no mercado financeiro. As empresas também são dominadas pelo mercado financeiro.

Sul21 – Em vez do lucro ser reaplicado em produção, vai para o mercado financeiro.

Enéas de Souza – É só ver a estrutura das empresas. A governança corporativa é a financeirização do micro. Toda empresa hoje tem de funcionar para dar uma rentabilidade alta de suas ações. Toda a atividade é voltada para a oscilação das ações.


“As tesourarias de todas as empresas aplicam no mercado financeiro. As empresas também são dominadas pelo mercado financeiro. Toda empresa hoje tem de funcionar para dar uma rentabilidade alta de suas ações” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Sul21 – Gostaríamos que o senhor falasse da situação da União Europeia. De que modo a crise financeira no continente pode dar sinais de saída para esse novo modelo que o senhor fala?

Enéas de Souza – O caso da Europa é bem mais complicado que os EUA, pois não há um governo europeu, apenas uma unidade política. Essa União Europeia foi a constituição do que há alguns anos atrás se chamava de a “Europa dos capitais”. O que funciona para o capital é não ter controle, então ele avança no espaço onde ele pode fazer o que quiser. Eles fizeram isso, avançaram, apenas criaram uma certa garantia, um Banco Central europeu, mas não há governo, Estado ou Tesouro. Quando a economia cresce, tudo dá certo de um modo geral, mas quando começa a ter crise, as coisas começam a aparecer. A Europa não tinha moeda efetivamente, tinha uma moeda de circulação, de conta, mas não uma para reserva de valor. O Tesouro Nacional de cada Estado dava a garantia da moeda. Imagina na Grécia, quando tu tens um Tesouro que não garante nada. Como é uma Europa dos capitais, as coisas foram jogadas sempre num certo confronto, e sempre jogadas com a mudança da geopolítica interna. A Alemanha hoje comanda a Europa, claro que não tem poder absoluto, mas, de forma compartilhada com a França, a Alemanha está gerindo e dificultando acordos. O segundo ponto é que são todas economias diferenciadas. Nesse momento, eles estão discutindo na Europa como vai se resolver a crise grega, mas isso devia ter sido solucionado há muito tempo. No caso da Grécia, vários bancos franceses e alemães forneceram recursos para a Grécia. Se por acaso ela quebra efetivamente, vão todos esses bancos, e é uma reação em cadeia.

Sul21 – O senhor considera adequado esse pacote de ajuda à Grécia, na medida em que é a mesma solução aplicada a na crise de 2007, que não resolveu nada?

Enéas de Souza – É que este plano de salvamento foi de “meio salvamento”, atiraram uma boia que não estava inflada. Foram 110 bilhões ano passado, agora mais 70. A Grécia não tem dinheiro, os bancos estão cada vez pressionando mais e, se eles não emprestam, como ela vai fazer? Essa é a questão. Há várias propostas, inclusive de não pagar nada, o que daria muito problema. É importante salientar também que está em gênese a possibilidade, se os políticos forem inteligentes, de fazer uma Europa também de cidadãos e não apenas do capital. Para isso teria de se criar um Estados Unidos da Europa, com um Estado, mas isto levaria muito tempo. Segundo ponto é a possibilidade de um Tesouro europeu. Outro ponto que também entra na solução da crise é que a Europa poderia comprar os títulos da Grécia e gerir. Se ela entra no mercado, ela baixa o que estão pedindo e gere mais facilmente a crise do que a própria Grécia. Essa ideia do fundo de resgate, que se transformaria em uma agência de dívidas europeias, é também um embrião dessa possibilidade do Tesouro se constituir em realidade. Tudo isso é muito complicado, pois envolve primeiro uma solução política. É a Europa dos capitais que está em crise, mas ela vendeu para a população que estava fazendo a união da Europa. Esse é o ponto, como passar de fato para uma Europa política, capaz de se administrar totalmente. O segundo ponto é como bloquear a questão financeira, pois do jeito que está, é um saco sem fundo. É preciso um controle do Estado sobre as finanças. Só temos o Banco Central europeu e a possibilidade de um Tesouro europeu, mas não tem um Estado. Nos EUA, tu tens uma crise também do Estado. Como se relaciona o Estado com o setor privado? Veja essa crise do Rupert Murdoch, estamos numa situação dramática, porque tu não sabes quem manda em quem. Ele tem um domínio do sistema de comunicação da nação. Há uma crise nesse sistema. O Brasil está na ponta. Na outra ponta, está o eixo da China, onde o Estado domina. É importante que independente se sou favorável que o Estado domine a sociedade, o fato é que nesse momento atual o Estado domina as finanças chinesas, a política industrial, o mercado de trabalho, a possibilidade da construção de uma política econômica global. O que está em questão hoje é qual é o papel do Estado.



“Quando a economia cresce, tudo dá certo de um modo geral, mas quando começa a ter crise, as coisas começam a aparecer. A Europa não tinha moeda efetivamente, tinha uma moeda de circulação, de conta, mas não uma para reserva de valor” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Sul21 – Um controle maior do Estado sobre a economia é uma alternativa para essa crise.

Enéas de Souza – As coisas só se resolvem com o Estado tendo um controle da economia, e a questão sempre é quem controla esse Estado, e fazendo o quê. Isso é uma transformação completa. Estamos no meio de um temporal e nem enxergamos que há temporal. Uma das questões chave é a crise ideológica muito profunda, que leva inclusive as pessoas a não se informarem muito. Acabaram com a teoria, só quiseram ficar com a prática, e todos ficaram sem capacidade de compreender o mundo. Muitos economistas só ficaram ligados nas questões do mercado e perderam o bonde. Não estão entendendo essa realidade toda. Os que se recusaram a pensar a política, estão fora da compreensão da situação atual do mundo, porque ela é complexa, é uma crise financeira, produtiva, estatal e ideológica.

Sul21 - Sobre o Brasil, quando Lula ganhou a eleição, os títulos da dívida pública caíram de valor e o dólar bateu lá em cima, porque se esperava que ele desse um calote. A solução foi trazer o Henrique Meirelles, um cara do mercado financeiro. A economia brasileira cresceu na crise, mas temos hoje a maior taxa de juros do mundo. Temos uma dívida externa muito grande. Outra preocupação é que a ecomomia esteja centrada na produção de commodities, não estamos investindo nas novas tecnologias. O Brasil não está caindo numa grande armadilha?

Enéas de Souza – Na minha opinião, o Brasil fez uma passagem absolutamente extraordinária. Quando o Lula entrou, a situação era muito grave pois houve um ataque frontal das finanças ao Brasil, já no período da eleição. Mas o País conseguiu fazer um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Lula ganhou e conseguiu colocar o pais numa situação relativamente boa.

Sul21 – O financista George Soros chegou a dizer que os brasileiros não tinham direito à escolha.

Enéas de Souza – Eles pensam assim, e isso que o Soros é dos melhores, imagina o resto. No final do governo Fernando Henrique Cardoso, foi feita uma coisa horrível, pois se mudaram os prazos que estavam alongando, para mais curtos. Quando o Lula entrou, a crise estava muito forte. Mas conseguiu resolver, não só pela presença do Meirelles mas também por políticas mais ligadas à questão financeira. O Lula fez uma jogada que demorou muito tempo para as pessoas perceberem, que foi uma política coerente em relação aos trabalhadores e deserdados: aumentou o salário mínimo, deu crédito à população, criou o Bolsa Família, depois o Minha Casa, Minha Vida. Isso tudo é uma política coerente, que a Dilma está continuando, como o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), ou seja, criar pessoas para o modelo produtivo que está vindo, ao mesmo tempo o Minha Casa, Minha Vida 2. Há uma política coerente, sem destruir as vantagens que o capital financeiro tinha. Na crise de 2007 e 2008, todo mundo caiu. Por que o Brasil caiu menos? Porque fez uma política keynesiana por dentro. O Estado entrou em campo e, ao invés de investir, pois não tinha como, renunciou seus impostos e estimulou a indústria dos automóveis, permitiu que as classes médias avançassem na sua constituição de bens, ou seja, conseguiu parar a situação e o Brasil se recuperou rápido. Mas voltando à pergunta. Nós nos recuperamos também porque a especulação internacional em commodities favoreceu o Brasil naquilo que nós temos de produção para exportação. Como a especulação aumenta o preço, nós aumentamos o preço também. Nós conseguimos manter o saldo da balança comercial razoavelmente positivo, embora haja problema nas transações correntes. Mas todo o problema é a passagem de uma economia determinada para outra. Essa passagem é feita, mas essa economia nova precisa se sustentar em algo também. As pessoas precisam comer. E o Brasil tem essas coisas. Nós temos petróleo, temos produção alimentar. Nós estamos já ancorados nesse novo modelo.




“O Lula fez uma jogada que demorou muito tempo para as pessoas perceberem, que foi uma política coerente em relação a área dos trabalhadores e dos deserdados, sem destruir as finanças” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Sul21 – O Brasil, estando no meio dos modelos de Estado e suas relações, seria aí uma fórmula possível?

Enéas de Souza – Aí já entramos no campo da incerteza. No Brasil, ainda continuamos sob a situação de pressão das finanças. No período final do Lula, as coisas avançaram, pois como as finanças americanas estavam em crise, essa ligação, sistema bancário e finanças internacionais, foi meio que afastada. Mas com a recuperação em 2008 das finanças americanas, pelo menos no sentido de especular e ganhar dinheiro, novamente mudou. De outro lado, o governo do Lula tinha um setor produtivo muito unido ao governo, pois este estava pensando em modificações profundas. O PAC era um exemplo disso, independente de dar resultados ou não, deste ponto de vista, ele deu resultados, ele trouxe o setor produtivo para apoiar o governo. O setor produtivo, hoje, não está unido, pois uma parte, o agrobusiness, que está satisfeita, a construção civil está começando a ficar satisfeita, e outra parte, indústria de tecidos, objetos eletrônicos, brinquedos, estão sofrendo uma concorrência brutal com a China. O Brasil está ligado economicamente à China, mas será que geopoliticamente é importante estar ligado à China? Politicamente nós estamos mais pendendo para os Estados Unidos, com o pré-sal, a Quarta Frota, a questão da Amazônia. Você vê que o Brasil está muito cauteloso na política externa.


“O Brasil está ancorado nesse novo modelo. Não temos capacidade ainda de competir nas questões das indústrias que vão liderar o processo, mas sem a gente esse modelo não vai avançar” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Sul21 – Do ponto de vista imediato o Brasil está preparado?

Enéas de Souza – Acho que sim. O Brasil está preparado assim como na crise de 2008, de fazer aquilo que eu chamei de keynesianismo por dentro, de fazer renúncia fiscal para manter a produção. O Brasil tem condições, uma indústria que pode voltar-se para dentro, ou seja, tem um grau de autonomia que não tinha antes. O Brasil era um país sem articulação e mudou radicalmente. É um país de alguma importância, e que já estava existindo, mas quem deu essa ação foi o Lula. E foi fundamental se desatrelar dessa visão neoliberal que nos levou ao inferno. O Estado podia ser ineficiente, mas não precisava ter vendido algumas empresas, não precisava liquidar o planejamento. A questão fundamental nisso tudo é que nós temos uma constante luta, combate, uma divisão na sociedade. Essa crise americana e europeia só pode ser entendida nessa situação de passagem da geopolítica e do novo modo de produção das tecnologias de comunicação. E é necessário uma reforma do Estado para controlar as finanças. E tem de ocorrer em nível mundial. Isso não vai acontecer facilmente, é um movimento de grande luta e transformações. Aliás, é necessário construir condições ideológicas para fomentar essa transição e a reforma do Estado, que não se muda assim no mais sem ideologia. Uma coisa que se pensou equivocadamente, ao meu ver, é que o capitalismo não é apenas uma economia produtiva ou financeira, ele é um modo de organização da sociedade humana no desenvolvimento histórico. As forças que estão funcionando passam por vários aspectos, passa pela economia, política, mas passa também pela cultura, pela ideologia… se vocês pensarem bem, olha o que está acontecendo com a mobilidade social, pessoas que saíram de condições terríveis de vida, elas querem mais um novo carro, mais uma nova casa. Nós não nos damos conta ainda do que foi esse avanço do neoliberalismo, e que coisas absolutamente absurdas se criou no mundo. Por exemplo, a ideia de que você precisa ser vencedor. Se há bilhões de pessoas, quantos vencedores serão? Tem de mudar essas coisas todas. O sentido fascinante do mundo é esse momento de grandes transformações.

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