Morre Videla. Na Argentina. Onde ditador vai para a cadeia.
Morreu, nesta quinta (17), de “causas naturais”, o general e ex-ditador
Jorge Videla, aos 87 anos, no Centro Penitenciário Marcos Paz, onde
cumpria pena de prisão perpétua por cometer crimes de lesa humanidade.
Ele comandou o golpe de março de 1976, que derrubou o regime
democrático, e coordenou a repressão entre 1976 e 1983 – quando mais de
30 mil pessoas foram assassinadas por questões políticas, e mais de 500
bebês de ativistas foram sequestrados ou desapareceram. Em 2010, foi
condenado à prisão perpétua, depois de ter sido condenado e anistiado
anteriormente. Videla chegou a confessar que as mortes foram
necessárias.
A Argentina pode ter um milhão de problemas. Mas conseguiu lidar com seu
passado de uma forma bem melhor do que nós, punindo responsáveis por
sua ditadura militar (uma das mais cruéis da América Latina), reformando
sua anistia.
Por aqui, as coisas não funcionaram assim.
Por exemplo, o coronel Erasmo Dias morreu, em 2010, aos 85 anos. Na
época, muita gente entrou em júbilo orgásmico com a notícia. Entendo a
alegria de todos os que, durante a ditadura, foram atropelados pelos
seus cavalos ou torturados sob sua responsabilidade. Mas não deixo de
dar meus pêsames pela nossa incompetência, por não conseguirmos fazer
com que esse arauto da retrocesso respondesse por tudo aquilo que fez.
De 1974 a 1979, Erasmo ocupou o cargo de secretário de Segurança Pública
em São Paulo, garantindo a ordem sob as técnicas persuasivas da
Gloriosa. Ficou conhecido pela invasão da PUC-SP em setembro de 1977, ao
reprimir um ato pela reorganização da União Nacional dos Estudantes.
Um amigo comentou que a “justiça” finalmente havia chegado para Erasmo
através do câncer que o consumiu. Discordo. O sujeito com 85 anos,
morando confortavelmente, sem ter que responder pelo passado, passa
dessa para a melhor e isso é “justiça”? Não só não tivemos a competência
para abrir e limpar publicamente as feridas que ele causou, como a
sociedade ainda o elegeu deputado federal, deputado estadual e vereador.
Outra alma ceifada tempos atrás pela mesma “justiça” foi a do Coronel
Ubiratan, responsável pela execução de 111 presos na Casa de Detenção do
Carandiru, em São Paulo. Não é que a sociedade não conseguiu puni-lo,
ela não quis puni-lo. Ele fez o servicinho sujo que muitos paulistanos
desejam em seus sonhos mais íntimos, de limpeza social. Morreu em 2006,
em um crime não solucionado. Estava a caminho de ser facilmente reeleito
como deputado estadual, ironizando o país ao candidatar-se com o número
14.111.
Os dois não são casos únicos. Se listássemos os fazendeiros que
assassinaram trabalhadores e lideranças rurais no Brasil e morreram com
processos criminais (lentamente) tramitando contra eles, gastaríamos
hectares e mais hectares. Quer mais um exemplo? O julgamento de
Vitalmiro Bastos de Moura, condenado por ser um dos mandantes do
assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, foi novamente
cancelado.
Todos os que lutam para que os direitos humanos não sejam um monte de
palavras bonitas emolduradas em uma declaração sexagenária não se sentem
contemplados com o passamento de Erasmo Dias, Ubiratan, ou mesmo de
ditadores como Pinochet. Mas podem ficar tranquilos com a ida de Videla.
Não quero fazer Justiça por minhas mãos, não sou lelé da cuca. Quero
apenas que a nossa justiça funcione. Ou, no mínimo, que a nossa
sociedade consiga saldar as contas com seu passado.
Por aqui o governo brasileiro resolveu não mais tentar buscar a revisão
da Lei da Anistia. Mais do que punir torturadores, seria uma ótima forma
de colocar pontos-finais em muitas das histórias em aberto e fazer com
que pessoas tivessem, pela primeira vez em décadas, uma noite de sono
inteira. A Presidência da República resolveu investir suas fichas na
Comissão da Verdade, criada pelo Congresso Nacional. Ela é uma grande
iniciativa. Mas, mesmo assim, não irá garantir que representantes
daquele tempo, como o coronel Brilhante Ustra, deixem de reinventar a
História como quiserem sem medo de serem punidos.
...
Como já disse aqui, o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz
sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de
interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona
rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais
pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A ponto
de ser banalizada em filmes como Tropa de Elite, em que parte de nós
torceu para os mocinhos que usavam o mesmo tipo de método dos bandidos
no afã de arrancar a “verdade”.
A justificativa é a mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou nas
prisões no Iraque e em Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra. Ninguém
explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem
humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás. Esse é
o problema de sermos o país do “deixa disso” ou mesmo do “esquece, não
vamos criar caso, o que passou, passou” e ainda do “você vai comprar
briga por isso? Ninguém gosta de briguentos”.
Enquanto não acertarmos as contas com nossa história, não teremos
capacidade de entender qual foi a herança deixada por ela – na qual
estamos afundados até o pescoço e que nos define.
Nenhum comentário:
Postar um comentário